sábado, 23 de outubro de 2010

A IMPORTÂNCIA DO TEATRO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

EXTRAIDO DO TRABALHO PUC-RIO

(PUC-RIO certificado 0212103/CA)


Fundamentação Teórica
Qual a necessidade da arte, em especial o teatro, na Educação Infantil? De que forma a arte sintética do teatro pode assimilar outras linguagens artísticas (Artes Plásticas, Dança, Música, Literatura) para fazer com que a criança se aproprie do patrimônio cultural estabelecido ao longo da história da humanidade? É possível à criança pequena, ainda em processo de construção da linguagem, se apropriar do Teatro e através dele desenvolver sua potencialidade expressiva e cognitiva? Como levá-la a compreender as relações sociais nas quais se encontra inserida, através da dramatização de histórias, contos de fadas, poesias e fazê-la vislumbrar um sentido para a existência humana numa sociedade capitalista, de consumo e extremamente individualista? Como aproveitar a sua natural tendência em acreditar na magia, no encantamento, no misterioso para estabelecer no imaginário infantil o poder da arte como espelho da natureza e do homem, artífice desta construção unicamente humana, a cultura?







Este capítulo tenta responder a estas questões em diálogo com alguns autores cujos conceitos foram organizados em cinco diálogos que tentam fundamentar a prática teatral, exercida cotidianamente na creche Fiocruz, que sedimenta sua prática pedagógica numa visão de criança cidadã

1.
2.1
DIÁLOGO I - Do Primitivo à Criança Contemporânea: O Teatro Como Ponte (Uma Conversa com Ernst Fisher)
Assim que o príncipe montou a cavalo e viajou, a rainha-velha começou a ter vontade de beber sangue e comer carne humana. Ficou mesmo bruta e não podendo passar o desejo, chamou o mordomo e mandou que lhe servisse Belo-Dia, com bom molho, no almoço do dia seguinte.
(Câmara Cascudo).

1 Entendemos por criança cidadã o que fala o Art. 3º do ECA. “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais, inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral do que trata essa Lei, assegurando-se-lhes por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental e moral, espiritual e social, em condições e de dignidade.” 18
Neste primeiro diálogo, estabelecemos uma conversa com Ernst Fischer a partir de sua obra “A Necessidade da Arte”, tentando delinear o efeito da Arte na Educação Infantil a partir da compreensão de sua natureza, de sua gênese e da ação por ela exercida na construção de uma consciência estética, que faça a criança se apropriar de seus meios criativos para compreender os processos que regem o mundo. A partir dessa compreensão, levá-la a atuar criticamente em relação a esses processos, com uma visão mais social, sensível e procurando integrar o indivíduo à coletividade.
Para tanto, podemos utilizar a visão de Fischer que teoriza sobre a necessidade da arte a partir da idéia de uma raiz comum da qual se originaram a ciência, a religião e a própria arte: a manifestação de uma forma primitiva de magia no cotidiano cultural do homem primitivo com o intuito de tentar dominar o mundo real inexplorado.

Com o progressivo desenvolvimento dessas três formas de conhecimento humano, ocorre a diversificação entre elas para atender as necessidades de sociedades mais complexificadas e que passam a reservar à arte o papel de clarificar o ser humano a respeito das relações sociais que vão sendo estabelecidas, iluminar sensivelmente o seu raciocínio a fim de auxiliá-lo a reconhecer e transformar a realidade social a sua volta. A arte ajuda o ser no processo de identificação com a vida do outro, incorporando em si aquilo que ele ainda não é, mas que pode vir a ser: um ser humano “total”.
Fisher associa a idéia do nascimento da arte com o do trabalho humano coletivo a partir da concepção da ferramenta como utensílio que permitiu ao homem primitivo distanciar-se da natureza, lançar-lhe um olhar crítico, amedrontado, mas que procurava dominá-la magicamente.


A ferramenta tornou o homem um ser que libertou sua razão criadora para auxiliá-lo na tarefa de adquirir consciência de estar no mundo, provocando a sua ação consciente.

Essa visão em que o primitivo, a partir de uma vivência inicial colada à natureza e por necessidade de subsistência, desenvolveu através do corpo, preferencialmente da mão, todo um sistema cultural ao criar o instrumento de trabalho antes mesmo de poder raciocinar sobre a diversidade de seu uso, tenta recolocar a importância da corporeidade, do sentimento face ao pensamento que “não passa de uma forma de experimentação abreviada que se transfere das mãos 19
para o cérebro, de modo que os resultados das experimentações precedentes deixam de ser “memória” e passam a ser “experiência” (Fisher, 1971, p.27)
Para Fischer, o trabalho foi criador do pensamento, do fazer consciente e do ser consciente, gerando a linguagem, fruto de variadas denominações sensoriais que ajudavam o primitivo a diferenciar-se da natureza ao seu redor.






O encantamento proporcionado pela imitação do mundo exterior tornou-se um fator essencial de constituição da linguagem, levando-a a ter “uma dupla natureza como meio de comunicação e expressão, imagem da realidade e signo para ela, percepção “sensorial” do objeto e abstração” (Fischer, 1971, p.34), e que além disso transmitisse as sensações e experiências que a natureza à sua volta lhe proporcionava. Aos poucos, a linguagem vai ocupando um lugar central na concepção de cultura e de arte.


Para o primitivo, natureza, vida, trabalho, linguagem, cultura, arte, comunicavam-se através do ritmo ditado pelas atividades de sua vida cotidiana. Portanto, a necessidade da arte nunca tinha sido questionada até então, pois através de seus produtos: a canção, a poesia, a mimesis, tornava-se a sua própria razão de ser, pela importância em organizar o grupo social em torno do trabalho coletivo adquirindo força, magia e trazendo mais vontade ao grupo para realizar a tarefa a que se obrigava, pois essa magia representa o que mais de verdadeiro se busca na arte (Fischer, 1971).

A gênese do teatro é semelhante. Originou-se das cerimônias religiosas que visavam alegrar aos deuses da natureza, para que enviassem boas colheitas, celebrando o encontro entre a mãe terra e a semente, bebendo o vinho e promovendo o amor. A comunicação entre as pessoas, o ritmo das danças, levaram ao surgimento da poesis e às primeiras formas organizadas de manifestações teatrais de que se têm notícia.

O processo de metamorfose adquiriu caráter mágico, divino, para que o primitivo pudesse agradar aos deuses, encantando a natureza e levando-a à transformação, para que garantisse a retribuição ao esforço do trabalho coletivo. Sendo assim, “a Arte era um instrumento mágico e servia ao homem na dominação da natureza e no desenvolvimento das relações sociais” (Fischer, 1971, p. 44).

A arte passou a conferir poder ao primitivo sobre a natureza e os outros homens, tornando-se um elemento indissociável da realidade cotidiana, 20
derivando-se das manifestações ritualísticas até alcançar formas mais elaboradas de encenação artística.

Qualquer criança, ao nascer, traz em si o passado primitivo do homem, reproduzindo a mesma trajetória pelo qual ele evoluiu até se erguer sob os dois pés. A criança nasce primitiva e ao sofrer o processo de educação no seio de uma sociedade, assimila as regras sociais e culturais nos quais vai se desenvolvendo. O interesse da prática teatral na Educação Infantil é recuperar, junto com a criança pequena, por ela e para ela, o sentimento ancestral de magia e encantamento que a arte apresentou na constituição da noção de humanidade, para que ao adquirir o olhar estético, a criança possa vivenciar o mundo que a rodeia com um profundo sentimento renovador e crítico que, a qualquer época, é imprescindível para a evolução do que conhecemos hoje como uma sociedade humana.

2.2
DIÁLOGO II – A Importância dos Contos de Fadas (Conversando com Bettelheim)
Nesse momento chegou uma escrava negra, cega de um olho, a quem chamavam a Moura Torta. A negra baixou-se para encher o pote com água do rio mas avistou o rosto da moça que se retratava nas águas e pensou que fosse o dela. Ficou assombrada de tanta formosura. (Câmara Cascudo)
O segundo autor que nos ajuda a fundamentar nossa prática teatral, Bruno Bettelheim, trabalha com a narrativa fantasiosa (o conto de fadas, o conto popular), tentando estabelecê-la como uma possibilidade cognitiva concreta (embora fantasiosa) para que a criança possa alcançar um objetivo fundamental na sua constituição: construir significado para a vida que pulsa ao seu redor e dentro dela, através do enriquecimento de nossas capacidades interiores, como a imaginação, as emoções e o intelecto.
Concomitantemente, o conto de fadas ajuda a criança a conhecer a história, muitas vezes oculta, da constituição das relações sociais do mundo, tal como o conhecemos hoje, assim como as diferentes maneiras pelas quais a humanidade age neste mundo na eterna luta pela vida, construindo sociedades e as destruindo, estabelecendo sistemas de governo e estilos de vida. 21

O primeiro grupo social de uma criança2 é, idealmente, a família que possui histórias que a ajudam a se constituir de diferentes maneiras possíveis, transferindo-lhe capital cultural e social estabelecendo um ponto de partida que pode ajudá-la a se desenvolver dentro de um sistema de relações sociais que situa sua família numa classe hierarquicamente estabelecida.

As narrativas fantasiosas, discriminadas pelo mundo adulto pelo epíteto “historinha para criança” (e o diminutivo carinhoso, evidencia todo o demérito que lhe é imposto), ao fazer parte do mundo infantil no meio escolar, colaboram para somar valor ao capital cultural da criança pequena, ajudando-a a explorar suas potencialidades cognitivas e expressivas. São essas histórias, lançando mão de signos poderosos consubstanciados nas imagens da bruxa, madrasta má, gigante poderoso, fada boa, criança frágil, inteligente e corajosa, que revelam a história individual e social do ser humano, explicitando crueldades, injustiças e lutas necessárias para sobreviver nesse mundo. Elas possuem o poder de despertar e atrair a curiosidade infantil, sem abrir mão de seu potencial de entretenimento, ajudando a criança a desenvolver seu intelecto, a compreender suas emoções internas, profundamente conflituosas, a reconhecer suas dificuldades e a sugerir soluções (Bettelheim, 1996).
Outro objetivo da narrativa e da dramatização dos contos de fadas, reside no fato de ele permitir à criança “construir um ligação verdadeiramente satisfatória com outra pessoa” (Bettelheim, 1996, p. 19). Na grande maioria dos contos de fadas o herói precisa sempre encontrar um outro que o ajude a atingir um estágio mais avançado de conhecimento e de amadurecimento. E quando esse objetivo é alcançado na narrativa, constitui-se afinal um exemplo de sentido para a vida individual do herói e, conseqüentemente, para a criança.

Ao longo da história do exercício dessa prática teatral, tornou-se comum a dramatização de uma gama variada de narrativas, desde as mais tradicionais de origem européia, passando por outras de diferentes nacionalidades numa viagem pelo mundo que se mostrou de uma riqueza cultural ímpar, até chegar as variantes nacionais coletadas por Câmara Cascudo no seio do folclore brasileiro. Pôde-se observar que as características fundamentais de uma boa narrativa estão presentes em muitas delas, independente de sua nacionalidade ou especificidade: dilema existencial breve e categórico; simplificação de situações; tipificação dos personagens; onipresença do bem e do mal, com a garantia da vitória do bem através da identificação com o herói (Bettelheim, 1996).

A narrativa fantasiosa está profundamente relacionada com o passado da humanidade que, através delas, revela seu rosto repleto de cicatrizes à criança contemporânea, fazendo uma ponte através do tempo com suas questões internas, assegurando-lhe caminhos possíveis, já trilhados por outros, para solucionar seus problemas complexos, suscitados por uma sociedade orgulhosa de seu poder tecnológico que lhe garante poder, conforto, progresso.




Queremos acreditar que a escolha do conto de fadas como dramaturgia básica de uma prática teatral, que pretende estabelecer o jogo do teatro no cotidiano escolar infantil, insere-se numa perspectiva benjaminiana que concebe a Infância como “historicamente construída”, imaginando-a como a fase da vida capaz de ser crítica da cultura do mundo adulto.

Essa dramatização se torna “experiência”, possibilitando que uma aventura narrada e vivenciada coletivamente na ficção, faça parte do que é vivido pela criança, enraizando-se na realidade, refletindo suas contradições, iluminando a estrada da contemporaneidade e o que pode acontecer com a subjetividade infantil ao se defrontar com ela, revelando a história humana através da Infância, estabelecendo-a como “um modo privilegiado de percepção” (Gagnebin, 1994, p. 86) e fazendo-nos perceber a criança como aquela que pode nos ensinar a criar, sentir, viver melhor (Kramer, 2003).

Outro objetivo da prática teatral em questão, se sustenta na possibilidade de realizar a alfabetização em linguagens artísticas e a iniciação em comportamento estético (Gagliardi, 1992) da criança pequena e de especificar o papel do teatro na educação como um veículo amplificador da experiência cognitiva e emocional, através de um trabalho pedagógico específico (Gagliardi, op. Cit.), auxiliando no processo de constituir a categoria “Cultura da Infância” como contraponto aos pressupostos de uma sociedade fundamentada na primazia da razão, como único meio de soluções de problemas, do trabalho, prioritariamente visto como produtor de bens que sustente a qualquer preço o modo de vida capitalista, e de depredação da natureza em nome do consumo, razão de ser do estilo individualista e competitivo de existência contemporânea.
23
O esgotamento das fontes de recursos naturais do planeta, a superpopulação, a urbanização desenfreada dos grandes centros, o neoliberalismo econômico3 em oposição ao Estado de Bem Estar Social, são alguns dos fatores que tornam inviável a idéia de desenvolvimento infinito capaz de gerar trabalho para todos, sustentado por um conceito de educação formador de mão de obra capacitada que sustente a engrenagem capitalista.
Acreditamos que a prática teatral em questão, visa colaborar com uma concepção de educação que possibilite a criança pequena desenvolver um tipo particular de conhecimento, o sensível, que colabore com sua iniciação no mundo cultural através da apresentação do que de mais significativo possa haver na cultura do país e do mundo, usando “linguagens estéticas” que estimulem a vivência de experiências sensoriais e expressivas, adaptando esse material às necessidades específicas do palco e do entendimento da criança, levando-a a se reconhecer como um vasto campo de possibilidades na interação com o outro.

Para executar essa tarefa, partamos do princípio de que não devemos subestimar a capacidade intelectual e corporal da criança, achando-a incapaz de apreender a Literatura, as Artes Plásticas, a Música, o Teatro que lhe oferecemos. Entretanto, tudo precisa ser analisado e às vezes adaptado para atender às necessidades cognitivas em construção.

O educador precisa desenvolver e aprimorar seu conhecimento estético nos mais variados campos da arte, além de sua capacidade expressiva, para que possa enriquecer seu poder de comunicação através de efeitos dramáticos transmitidos pelo uso adequado da voz, do corpo, visando levar a criança a vivenciar as possibilidades expressivas e dramáticas do seu próprio corpo, sua voz, sua imaginação, atraindo sua atenção pelo sensível, pelo encantamento.

A interação e o diálogo entre o adulto e a criança são fundamentais, pois é através deles que ela vai se apropriando do conhecimento estético. Sentindo-se acolhida e respeitada a partir dessa relação, a criança responde agindo de forma mais expressiva, amorosa e integral, em consonância com o outro, aprendendo através do jogo teatral a descobrir uma possibilidade de sentido para a vida.

Pela comunhão estabelecida entre o educador e as crianças, e entre elas próprias, o teatro pode se transformar num brinquedo cultural que ultrapasse o faz-de-conta do cotidiano infantil para se transformar num instrumento de trabalho coletivo para a criança que “assim aprende a agir como “ser social”e cresce. Os grupos infantis são grupos de iniciação para a vida por intermédio da experiência e em contato direto com o meio social em que vivem. Mesmo sendo situações vividas de forma elementar, elas antecipam e preparam, passando pelos diversos estágios culturais, para a vida adulta.” (Altman, 1999, p. 240).

Dramatizar contos de fadas, poesias de Cecília Meirelles, Drummond, adaptar peças de Maria Clara Machado para que as próprias crianças possam ser os atores-autores de seu jogo teatral, são atitudes de uma prática que se pretende inclusiva, pois rompe as fronteiras entre os diferentes: o adulto e a criança, o pobre e o rico, o negro e o branco, a menina e o menino. Esse jogo permite a transgressão de códigos sociais e a conseqüente quebra de barreiras intelectuais e sentimentais que limitam a liberdade e o prazer que a criança pode experimentar ao dar vazão às suas fantasias e reflexões:

Menina pode brincar de ser o rei? Menino pode ser bruxa? Como vai pintar a boca de palhaço sem usar batom? Posso ser a madrasta ou a bruxa toda vez que eu quiser? Por que a Cinderela, que é bela, sofre muito? Por que o trabalho é chato? Por que pobre passa fome e não pode casar com o príncipe? Por que a bruxa quer matar sua filha? Por que a criança é abandonada na floresta pelos pais para morrer de fome e sede? Por que o príncipe é sapo? Tenho que beijar esse sapo nojento pra que ele vire um belo príncipe? Por que a Moura Torta é má, se é pobre e sofre também? Por que Chapeuzinho vai sozinha pra floresta? Por que arrepio de medo e prazer quando o Lobo fala que quer me olhar melhor, me ouvir melhor, me cheirar melhor?

Ao dramatizar em grupo a história fantasiosa, a criança vivencia questões complexas para as quais talvez só obtenha respostas ao amadurecer. Mas, no presente da infância pequena, vai se aparelhando para compreender com alegria as respostas que o mundo dá e lhe responder de volta, pois aprendeu pelo lúdico jogo do teatro a argumentar.

A dinâmica da prática teatral faz com que a riqueza das idéias embutidas nos contos de fada ganhe vida através do exercício lúdico da teatralidade. A magia traz o passado para o presente e a criança vai recolhendo fragmentos desse passado, colecionando-os e preparando-se para compreender a noção benjaminiana do despertar, isto é, “juntar energia suficiente para confrontar o sonho e a vigília e agir, em conseqüência, sobre o real não só pela força da imaginação pessoal, mas também pela força da ação coletiva” (Gagnebim, 1994, p. 90). A prática de teatro na Educação Infantil prepara a criança para compreender o mundo, unindo-a ao primitivo. O teatro pode ser a ponte.

2.3

DIÁLOGO III - Uma Conversa com Benjamin sobre o Teatro Infantil Proletário
Benjamin acreditava que a educação partidariamente planejada, seja ela burguesa ou proletária, não obtém nenhum efeito realmente substancial sob a criança, que pode apenas repetir frases que lhe são impostas a respeito dos mais variados assuntos, sem com elas realmente formar sua subjetividade.

Mas a criança pequena deveria ser educada proletariamente, isto é, adquirindo desde cedo consciência de classe através de uma pedagogia que atuasse através daquilo que é verdadeiro para a infância.

A verdade poderia ser encontrada no contexto que envolve a criança, expresso no campo do teatro, porque para Benjamin (1984), este é o lugar onde a vida pode ser expressa em sua totalidade, embora delimitada e emoldurada pelos limites do palco. Como a educação da criança exige uma abrangência que envolve toda a sua existência e, no caso da educação proletária, um terreno delimitado, é nos limites do teatro infantil proletário que pode ocorrer uma educação dialeticamente determinada.

Em oposição ao sentimento de medo nutrido pela burguesia em relação ao teatro, principalmente sobre os seus efeitos na educação das crianças, Benjamin (1984) considerava que o teatro infantil proletário poderia ser uma forma de organizá-las para “a possibilidade de ver a força mais poderosa do futuro ser despertada nas crianças através do teatro” (p.85).

Na contemporaneidade torna-se um tanto obsoleto ouvir-se falar de “teatro infantil proletário” diante dos fatos históricos recentes, como a falência da União Soviética e seus satélites, a adesão dos antigos regimes comunistas europeus ao sistema capitalista, a globalização e o neoliberalismo que ocupam de forma quase hegemônica corações e mentes de muitas sociedades, a perene injustiça social que
assola em especial o Terceiro Mundo, consubstanciada na miséria, no racismo e na violência.

Portanto, é preciso contextualizar as afirmações de Benjamin como uma reação a ascensão nazista ao poder em 1933 e seu conseqüente exílio; como uma forma de lutar contra a destruição da memória coletiva e de preservar a maneira própria da criança ver o mundo, sua sensibilidade e valores; como uma forma de estabelecer a cultura da criança face à cultura do adulto, preservando a plenitude e a integridade da infância diante do assédio da ideologia burguesa.

A luta de Benjamin pela infância continua a fazer sentido nos dias de hoje, principalmente para uma educação que se preocupa com a formação do sentimento de cidadania a partir do nascimento e que se organiza para oferecer os meios pelos quais a criança pequena pode tomar posse da cultura que pulsa ao seu redor.

Mas não podemos esquecer que, mesmo uma educação de vanguarda, é exercida num meio burguês sujeito a todas as influências neoliberais que predominam no mundo de hoje. Portanto, dialogar com Benjamin tentando iluminar o caminho tendo como lanterna os conhecimentos desenvolvidos por este pensador, é oportuno.

Mas como Benjamin (1984) organiza o “teatro infantil proletário”, que para ele é “fogo no qual realidade e jogo fundem-se para as crianças, imbricam-se tão profundamente que sofrimentos simulados podem converter-se em autênticos, surras simuladas em reais”? Em primeiro lugar, a encenação final de uma peça infantil não possui tanto valor quanto às tensões que surgem durante a execução do trabalho teatral coletivo, sendo elas que possuem o caráter educativo.

O papel do educador no teatro infantil proletário não é o de promover a educação moral das crianças ou prepará-las para exercer um papel na sociedade burguesa, mas sim de incentivá-las a se exercitarem coletivamente, de se envolverem pelos conteúdos propostos pelo educador, mas deixando que elas mesmas descubram as diversas tarefas e associações possíveis decorrentes dessa atividade lúdica coletiva. Para Benjamin (1984), é na coletividade infantil que podemos encontrar a “atualidade da criação” e a irradiação das mais poderosas forças.

O educador de teatro deve dar especial atenção à observação, ponto de onde começa a educação, e a partir do qual, ele pode capturar o “gesto infantil”, 27
percebido como sinal emitido da infância e que traduz esse mundo ao adulto, emitindo o revolucionário “sinal secreto” do vindouro. Para Benjamin (1984), o gesto infantil é “uma inervação criadora em correspondência precisa com a receptiva” (p.86). A tarefa do educador é “libertar os sinais infantis do perigoso reino mágico da mera fantasia e conduzi-los à sua execução nos conteúdos” (p. 86).

Um papel especial é reservado à improvisação das crianças, de onde surge o gesto infantil, sendo o teatro o sintetizador desse gesto, que aparece de repente, uma única vez. Para Benjamin, “todo desempenho infantil orienta-se não pela ‘eternidade’ dos produtos, mas sim pelo ‘instante’ do gesto. O teatro, enquanto arte efêmera, é infantil” (p.87).

É pela improvisação que a criança pode exercitar sua criatividade durante a encenação libertando-se do jugo pedagógico através do jogo. Mas isso não quer dizer que a criança não possa ter contato com os conflitos que ocorrem no mundo real, sendo necessário apenas que sejam apresentados de forma lúdica, garantindo assim a adesão da criança ao jogo teatral, até porque para Benjamin (1984), “a encenação é a grande pausa criativa no trabalho de educação”.

A nossa prática teatral apresenta algumas características que se aproximam do “teatro infantil proletário”. Nossa preocupação não é formar indivíduos para a sociedade burguesa através da inculcação de valores morais, ou valorizar a racionalidade em detrimento do sentimento, ou apenas aculturar as crianças concebendo-as como tábula rasa que precisam aprender a se comportar apropriada e educadamente.

Através da dramatização de contos de fadas, queremos propiciar a livre expressão da criança, favorecendo o aparecimento do gesto infantil benjaminiano, quando ela improvisa a história assimilada coletivamente depois da apresentação da narrativa do conto, que é uma forma literária muito valorizada por Benjamin, pois contém em si as reminiscências da construção da realidade atual.

O universo do conto revela o cotidiano cruel do mundo numa perspectiva oposta à romantização burguesa, apresentando ludicamente tanto a beleza quanto a perversidade do mundo, sem fantasias que sepultem sob uma camada de hipocrisia e moralismo, a história da construção da sociedade, de suas relações, e a possibilidade de modificá-la. O conto e a prática teatral infantil valorizam a magia na constituição da cultura da criança.

2.4

DIÁLOGO IV - O Círculo Encantado de Bakhtin: Teatro, Educação e Vida
O ato estético engendra a existência num novo plano de valores do mundo; nasce um novo homem e um novo contexto de valores - um novo plano do pensamento do homem sobre o mundo.
(Mikhail Bakhtin)
O teatro é uma forma de arte que se constituiu ao longo da história refletindo o que diz respeito à forma das sociedades se organizarem e à constituição dos diferentes tipos de sujeito, explicitando conflitos, ideologias, formas de pensar e sentir, costumes, hábitos, mitologias. Pode ser definido como o local da apresentação da condição humana em forma de ação, um elemento eminentemente teatral, ou como “uma pluralidade de códigos, de semióticas (a gestualidade, a cenografia, a música, etc)” (Coelho Netto, 1980, p.12).

Como toda forma artística pressupõe uma linguagem, o teatro procura fazer sentido através de um elemento específico de sua natureza, a teatralidade, isto é, “a produção de forma, de significantes que surgem como um conjunto em cena” (Coelho Netto, 1980, p.21) Portanto, a teatralidade é tudo aquilo que pode se tornar signo, sensação, percepção no momento em que se usufrui da arte teatral.

É justamente essa linguagem específica expressa pela teatralidade que se pretende que a criança pequena se apodere, com o intuito de prover seu desenvolvimento global através da aquisição de conhecimento sensível, capaz de fazê-la criar sentido, elemento imprescindível na união entre arte e vida.

O sentido se forma no encontro de uma subjetividade com outra, gerando uma gama variada de perspectivas de se representar a realidade do mundo, dentro de um contexto coletivo.

O ato de fazer teatro implica disposição para o diálogo: entre o autor e o herói, os atores e os personagens e destes com o público (ouvinte/espectador). Estas relações triangulares estão na base da constituição do teatro como uma arte coletiva capaz de falar ao espírito e ao sentimento humanos.

A importância de se compreender os vários elementos de uma encenação (teatralidade, dramaturgia, expressividade, sentimento, corporeidade) como elos que se interpenetram, influenciando uns aos outros e constituindo a linguagem teatral, nos aproxima do pensamento de Bakhtin para quem “a linguagem nunca está completa, ela é uma tarefa, um projeto sempre caminhando e sempre inacabado” (Jobim e Sousa, 1994, p.100).

A condição de ser inacabado é da natureza da existência humana. Por isso é importante irmos em busca do outro, aquele que pode nos ajudar na tarefa de nos completarmos mutuamente. É pela emoção interior, compartilhada nas vivências sociais, que podemos tentar executar o acabamento.

Para Bakhtin, a atividade estética existe na vida, nas relações sociais, definindo-se como uma atitude ética que funda e revê valores em constante movimento de transformação e acabamento. Ela se completa quando voltamo-nos para nós mesmos, elaboramos o material recolhido dando-lhe forma. “Uma obra de criação verbal (...): guia o processo de identificação e proporciona o princípio de acabamento ao outro” (Bakhtin, 1992, p.47).





O diálogo com Bakhtin se torna importante quando se deseja fundamentar uma prática teatral na Educação Infantil, que tem como características principais o fato de ser organizada e freqüente no currículo da creche Fiocruz e o de unir o conto maravilhoso, utilizado como texto dramatúrgico ao exercício da teatralidade por crianças pequenas, com o objetivo de fazê-las compreender a vida que as cerca, as implicações sociais a que são submetidas desde o nascimento e as diversas culturas e identidades que perpassam o tipo burguês.

Através da atividade estética proposta por esta prática teatral, acreditamos que a criança pode conhecer as relações existentes no mundo, expressas nas aventuras dos heróis dos contos de fadas, conduzindo seu corpo em busca do encontro com a alteridade e constituindo seu imaginário através de imagens estéticas propostas pela narrativa fantasiosa, pelo contato corporal e pela interpretação de ações dramatúrgicas concretas implícitas no fazer teatral.

No texto Arte Y Responsabilidad, Bakhtin defende a idéia de que “Yo debo responder con mi vida por aquello que he vivido y comprendido en el arte, para que todo lo vivido y comprendido no permanezca sin acción en la vida”. Podemos entrever aqui uma questão que é fundamental no pensamento de Bakhtin: “El arte y la vida no son lo mismo, pero deben convertirse en algo unitario, dentro de la unidad de mi responsabilidad”.

A partir dessa idéia seminal, acreditamos que Bakhtin estabelece um papel fundamental para a arte na vida de um indivíduo, como o elemento que pode
ajudá-lo a se constituir como um sujeito responsável tanto consigo mesmo, como com aqueles com os quais convive no meio social. O outro torna-se um elemento constitutivo desse indivíduo e vice-versa.

Mas de que arte estamos falando aqui? Da arte que se responsabiliza pela ação humana na vida e que reflete essa ação em seus elementos constitutivos, colaborando na formação da subjetividade humana e na criação de um sentido para a vida cotidiana.

Podemos supor então que usufruir da arte ou mesmo vivenciá-la, pode se constituir num ato ético, de comprometimento com a melhoria das condições de existência no mundo, levando o ser humano, pela sensibilização, pela reflexão e pela linguagem a se relacionar com a alteridade, estabelecendo uma relação dialógica, que é uma categoria fundamental no pensamento de Bakhtin.

A atividade estética cumpre a tarefa de reunir no interior do indivíduo a dispersão do sentido e do efêmero do mundo, construindo através da emoção e da razão um significado para o acontecimento existencial, o que conduz o indivíduo, em comunhão com o outro diferente dele, na direção de um acabamento, de um completar-se no espaço, no tempo e no sentido. Tarefa essa que, embora construída na relação, só pode ser finalizada quando esse indivíduo retorna ao seu interior e elabora todo o sentido captado no mundo (Bakhtin, 1992, pp. 204-205).

A convivência de sujeitos singulares que se relacionam, provocando uma interdependência de pontos de vista e a construção de uma consciência compartilhada a respeito do mundo, pode auxiliar o indivíduo a alcançar um modo de existência mais solidário, em que a aventura árdua de adquirir conhecimento, possa ser uma experiência única e ao mesmo tempo comunitária e no qual a arte exerça um papel realmente importante na constituição da subjetividade desse indivíduo e não seja mais um mero adorno divertido, um passatempo pequeno-burguês.

Bakhtin (op. Cit.) construiu grande parte de sua teoria esmiuçando a relação do sujeito com a obra de criação verbal (a estética). Mas o que ele nos fala a respeito da representação teatral, que aqui nesse trabalho constitui-se em nosso objeto de investigação?

Para Bakhtin (op. Cit.), apenas quando o espectador está presente é que o teatro se torna uma atividade artística relevante e a representação se torna arte, valorizando mais uma vez a categoria de uma consciência externa que dá acabamento e sentido à atividade estética.
A representação infantil, que a princípio não tem preocupação com a construção interior do personagem, é comparada por Bakhtin (op. Cit.) com o devaneio, com o sonho, com o desejo de participar de uma atividade prazerosa provocada pelo interesse lúdico de viver diferentes vidas.
Neste ponto é importante definirmos melhor a diferença entre a dramatização espontânea vivida pela criança durante suas brincadeiras imaginativas e a representação teatral.

Considera-se que a criança ainda não possui maturidade psicológica suficiente para compreender a vida interior de um personagem. Ela imita as ações exteriores, interessando-se pelas narrativas aventurosas, embora o faça com uma verdade muitas vezes invejada pelos profissionais do teatro. Diferentemente do ator, que compreende a distância significativa entre a sua própria vida e a do personagem, o que provoca a criação de uma aparência de realidade através de seu físico e de sua subjetividade.
Ambos, o ator e a criança, querem recriar o mundo e as relações humanas nele estabelecidas, embora com propósitos diversos. O ator quer metamorfosear-se, transformar seu corpo e emprestar suas emoções ao personagem para poder tornar verdadeira sua representação, tentando afetar o espectador pela ilusão criada no palco.





Bakhtin (op. Cit.) se pergunta se essa atividade é um verdadeiro ato de criação estética. Não é enquanto o ator procura encarnar o personagem, mas torna-se um, quando procura distanciar-se dele (herói) exercendo, junto com todos os envolvidos na atividade teatral, o papel de autor, sempre levando em conta o todo artístico criado para a peça, procurando provocar a consciência do espectador para que este possa agir no mundo e modificá-lo.

A criança procura mimetizar-se com o mundo ao redor. Ela não tem pudor em se transformar em animais, plantas, personagens fantásticos. Mas ao mesmo tempo existe algo na representação infantil do mundo que implica um certo distanciamento. Ela se envolve totalmente com seu gesto dramático no momento mesmo que o cria, mas também é capaz de interrompê-lo com rapidez no instante em que é perturbada, demonstrando profunda consciência de que apenas brinca de ser aquilo que efetivamente não é.

Entretanto, por ser ainda imatura, ela não desenvolveu a consciência (exotopia) necessária para poder valorizar a alteridade e poder distanciar-se da realidade do mundo, acabando por, muitas vezes, confundir-se com ela. A criança não está preocupada em modificar essa realidade, que às vezes sequer chega a compreender, embora deseje profundamente alcançar essa compreensão, para poder enfim chegar à maturidade sonhada.
A dramatização espontânea pode ser seu jogo preferido, pelo qual ela vai apoderar-se de alguns mecanismos para desenvolver suas habilidades expressivas e estabelecer suas relações sociais, aprendendo a agir no mundo em constante convívio com o outro, ao mesmo tempo que amadurece e vai adquirindo conhecimento através de um mecanismo lúdico e poderoso como a dramaticidade que lhe permite viver várias vidas numa só, a sua. Para Bakhtin “a arte possibilita-me viver várias vidas em vez de uma só, e com isso enriquecer minha experiência pessoal, possibilita-me participar internamente de outra vida, em nome do significado que ela comporta” (1992, p.96).


Em nossa prática teatral na Educação Infantil, queremos aproveitar essa aptidão da criança pela dramatização espontânea para provocar seu interesse pelo jogo dramático que, acreditamos, pode ajudá-la a constituir sua linguagem, pela exposição à diversas narrativas fantasiosas que podem ser dramatizadas.

Concomitantemente, a criança poderá desenvolver o gosto pela exploração de sua expressão corporal (gestual e vocal) e vivenciar uma experiência criativa e lúdica no seio de uma turma. Ela poderá descobrir que sua expressividade pode ir além da linguagem verbal, enriquecendo sua experiência pessoal através de uma atividade teatral organizada.

Outro ponto de contato entre a teoria de Bakhtin e a prática teatral passível de ser exercida na Educação Infantil é quando ele define o caráter sociológico da arte. Originada na vida, a ela retorna, propondo alternativas, numa perspectiva estética, crítica e social, já que “todos os produtos da criatividade humana nascem na e para a sociedade humana” (Bakhtin, s/d, p.2) Podemos esmiuçar mais esta questão, ao ouvirmos Bakhtin a respeito da “fala da vida e das ações cotidianas” (Bakhtin, s/d, p.4) que aparece enunciada no discurso artístico e vice-versa, pois também a fala artística se encontra enunciada na vida social.

Para a criança, que ainda está se apoderando do discurso verbal, pode ser interessante o exercício de modos de enunciação através do fazer artístico
(teatral), pois o discurso poético, carregado de poder semiótico, pode iluminar sua fala, acostumando-a a fazer constantes trocas simbólicas entre a arte (narrativa fantasiosa + teatralidade) e a vida, tão cheia de mistérios e recantos escuros, discursos ininteligíveis, fatos inexplicáveis, que a arte pode ajudar a criança a compreender.







O presumido, o horizonte extra-verbal, aquilo que a criança vive nos atos sociais, no seio da família, o que ela deseja, ama, quer (Bakhtin, s/d, p.6), pode ser perfeitamente afetado pela ação estética, vivida no contexto da Educação Infantil, ou mesmo em sua vida cotidiana fora do âmbito escolar.

Quando no ambiente educacional lhe é oferecida a oportunidade de vivenciar o ato estético e de aprender pela arte que seus atos são objeto de crítica (o outro, na relação, completa os vários sentidos possíveis de seus atos, exigindo reflexão e auto-reconhecimento) e que suas atitudes possuem uma história comum expressa tanto na narrativa fantasiosa quanto na realidade cotidiana, formando uma espécie de coletividade compartilhada de significados, então a criança pode começar a formar o que Bakhtin (1992) chamou de exotopia, isto é, a consciência da alteridade na vida.

Devemos levar em conta aqui a possibilidade da criança acostumar-se com a figura do espectador, que pode ser um educador e, principalmente, as outras crianças com as quais compartilha a atividade teatral e que podem lhe dar suporte emocional e afetivo e providenciar a oportunidade de acabamento, pois podem ver aquilo que ela não vê, construindo um conjunto de significados comuns. Isso pode ser considerado um ato ético (uma categoria bakhtiniana) pela oportunidade de construção coletiva de um conhecimento sensível que implica a atuação de um outro que compartilha um acontecimento da existência da criança.

A relação triangular eu-herói-ouvinte é constantemente exercitada durante a atividade, pois a criança se lança em busca da fantasia, do encantamento, da emoção, da cultura proposta pelo gesto teatral. Ela gosta de se metamorfosear nos heróis querendo “revestir de carne externa essa personagem principal da vida e do devaneio” (Bakhtin, 1994, p.49), cumprindo no cotidiano escolar a principal tarefa do artista: recriar a vida, através do corpo e do sentimento, propondo uma nova visão, ou melhor, uma revisão crítica e emocionada dos erros e acertos cometidos pelas sociedades no já vivido.

A relação criada pelo exercício do ato teatral é eminentemente dialógica, pois ao dramatizarmos precisamos do olhar do outro, de sua visão, de seu saber, de sua ação estética, de uma constante troca emocional que cria um ambiente em que compreender implica responder ao outro e completar sua visão de mundo.

Mas ao estabelecermos essa prática teatral organizada, estamos indo um pouco além das fronteiras do jogo dramático, que pertence exclusivamente à livre imaginação infantil. Ela é sustentada na livre dramatização de contos de fadas, usados como textos através dos quais a criança poderá exercitar a teatralidade.

Alguns autores consideram esses contos uma literatura enganadora pois mistificam as relações sociais, embora utilizem uma linguagem apropriada para o entendimento da criança, que necessita deles para tentar compreender o mundo que a cerca. Os contos possuem uma profunda riqueza antropológica, traduzindo para a criança modos de existência que se constituíram no passado, mas que estão presentes na atualidade.
A partir da fruição da narrativa dos contos de fadas, a criança pode começar a construir no presente da sua existência, pelo encantamento e pela fantasia, a memória do futuro.

Em nosso ponto de vista, os contos de fadas constituem-se como obra de arte, literatura da mais alta qualidade, ciência que “possui maior espaço de pesquisa e de aproximação humana. Ciência da psicologia coletiva, cultura do geral no Homem, da tradição e do milênio na atualidade, do heróico no cotidiano, é uma verdadeira História Normal do Povo.” (Cascudo, 2001, p.11).

Para Bakhtin (1992), a visão artística se organiza ao redor da vida do ser humano, constituindo seu ambiente de valores através das relações estabelecidas por ele no tempo, no espaço e no sentido, criando sua realidade estética. Portanto, concebemos o herói do conto de fadas como o outro artístico, que diferenciando-se do outro-criança, pode lhe conferir acabamento, quando a criança, através do exercício do jogo dramático, (sendo sua natureza aleatória alterada pela indução do educador ao exercício da prática teatral organizada) aproxima-se do artista (o ator) que “sabe situar sua atividade fora da vida cotidiana... e encontrar o meio de aproximar-se da vida pelo lado de fora...O ato estético engendra a existência num novo plano de valores do mundo; nasce um novo homem e um novo contexto de valores – um novo plano do pensamento do homem sobre o mundo” (Bakhtin, 1992, p. 205).

Não é nosso objetivo induzir a criança a “encarnar” o herói do conto de fadas, mas através do jogo dramático exercitado em conjunto, em que podemos ter um grupo de crianças representando um único personagem ao mesmo tempo, queremos que a criança possa adquirir conhecimento, ao mesmo tempo em que constrói referências dos valores que ajudaram a estabelecer a sociedade humana da forma que conhecemos.

No interior dos contos de fadas encontramos valores que se referem ao acontecimento da vida, mesmo que ao analisarmos sua linguagem fantasiosa possamos considerá-la inverossímil, mistificadora, como defendem alguns. A linguagem do conto é encantadora, construída apropriadamente para falar ao interior da alma infantil, obedecendo apenas às leis da verossimilhança da ficção. Contudo, está ligada ao que realmente acontece no mundo.

Quando João e Maria são abandonados à sua própria sorte, porque os pais não mais suportam a vida de necessidades que levam, podemos nos lembrar das milhares de crianças abandonadas que vivem pelas ruas de uma cidade como o Rio de Janeiro. Quando através de estratagemas elaborados pelas próprias crianças, utilizando sua sabedoria forjada na luta pela sobrevivência, João e Maria retornam para casa uma vez ou enganam a bruxa que deseja devorá-los, podemos nos lembrar das mesmas crianças de rua cariocas que fazem malabarismos nos sinais para sobreviver. Sentimos então nos contos de fadas “a resistência da realidade do acontecer da existência” (Bakhtin, 1992, p. 213).


Ao dramatizarmos os contos de fadas no exercício dessa prática teatral organizada na Educação Infantil, observamos algo da técnica de teatro épico. O estímulo à presença de muitos narradores (crianças e educador), que exploram diferentes pontos de vista a respeito da mesma narrativa, quebra a sensação de “ilusão”, própria do teatro aristotélico, aproximando o efeito obtido da técnica de “distanciamento brechtiano”.


Neste ponto é possível encontrarmos pontos de contato entre o teatro de Brecht e o que falava Bakhtin a respeito da arte dramática, principalmente no objetivo comum expresso por ambos de estimular a formação de uma consciência que seja modificadora do presente e que, ao compartilhar a construção de significados através da estética, possa tanto constituir um novo ser humano, como realizar a tarefa de reformar a sociedade pela crítica a valores arcaicos e à atitudes autoritárias, através do reconhecimento do valor dos sentidos compartilhados em sociedade e principalmente na vida.

Acreditamos que aqui reside o poder pedagógico do Teatro: na possibilidade de afetar comportamentos, atitudes, modos de pensar, através de uma atividade estética coletiva que obriga, por sua própria natureza, a constante troca de sentidos entre seus participantes. Talvez resida aí também a contribuição da arte na possibilidade de mudar o mundo que conhecemos: possibilitar acesso a formas de conhecimento sensível, realizando uma espécie de alfabetização sentimental, que permita a criança se dar conta de que ela se constitui nas relações sociais, que não está isolada num mundo de indivíduos isolados, que o que ela pensa, sente, já foi pensado, sentido por outros da comunidade humana.


Pelo contato com a diversidade contida nas narrativas fantasiosas (compilação de narrativas das relações humanas, expressas em linguagem encantada, produto da oralidade popular e da história de lutas sociais), aliada ao exercício da teatralidade que também pressupõe a troca afetiva, a ressignificação de modos de agir, a reflexão através do sensível, talvez a criança possa compreender que a arte não é um bem inacessível, mas um elemento comum da vida, que está bem aqui, ao alcance de sua mão e do qual ela pode se utilizar, recuperando a centralidade e o valor da palavra afetada pelo sensível, existente no fluxo da relação com a diversidade.
A criança pode rever a contrapelo a história na qual é lançada desde o nascimento, mas na qual pode influir ao se apossar do conhecimento, do signo lingüístico. Pode compreender (esse movimento mágico e intelectual, que implica algo de pedagógico) que não é possível viver na selva da vida, sem se comprometer em “ser para o outro”, esse que pode nos dar o acabamento, que nos completa, colaborando na tarefa do nosso próprio auto-conhecimento e em nossa consciência social.

Pelo gesto e pela entoação, provocados pelo interesse em interpretar teatralmente os personagens da narrativa fantasiosa dramatizada, a criança se aproxima do que Bakhtin dizia sobre estar esses dois elementos (gesto/entoação) impregnados “de uma relação forte e viva com o mundo externo e com o meio social” (Bakhtin, s/d, p. 9) já que “residem aqui as forças da Arte responsáveis pela criatividade estética e que criam e organizam a forma artística.”( Bakhtin, s/d, p.9)

O que afinal podemos desejar com o teatro aliado à dramatização dos contos de fada na Educação Infantil?
Talvez o que mais queiramos seja afetar a fala interior infantil para que, ao comunicar o que pensa e sente, ao procurar o contato com o outro, com o diferente, a criança crie consciência de si e deste outro e, mesmo estando ainda imatura para compreender em toda a sua extensão e profundidade o valor social e ideológico da arte, ela possa cantar, dançar, criar, teatralizar, sabendo que em seu poder está o mundo novo revigorado, renascido, na consciência de cada uma das crianças.

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